ARAUTOS DA VERDADE

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Cristianismo: letra e música

O que tem mais impacto sobre uma pessoa? A música ou a letra da música?
 Essa é uma pergunta de difícil resposta e não raro vemos gente defendendo a supremacia da música sobre a letra ou vice-versa. A letra, é claro, não é algo desimportante. As letras das canções de protesto de Chico Buarque e Geraldo Vandré miravam as injustiças e desmandos da ditadura, sendo que seus autores e intérpretes eram, no mínimo, frequentemente intimados a dar explicações sobre uma frase ou outra de uma música.
Tom Jobim foi inacreditavelmente vaiado no III Festival Internacional da Canção (1968), quando sua música “Sabiá”, de harmonia sofisticada e letra lírica, venceu a simples e direta “Pra não dizer que não falei das flores”, dos versos Caminhando e cantando e seguindo a canção…
A letra, para a plateia que estava na final do Festival, parecia ser o elemento principal da estética musical. Apesar de não ser uma disputa da “canção mais politizada”, os apupadores desqualificavam a melodia, o arranjo e a poesia de “Sabiá”, mesmo que esta trouxesse, nas suas entrelinhas, o lamento de um sujeito forçado ao exílio. O contexto social “requeria” uma música que explicitasse os anseios políticos da plateia. No entanto, o júri não deu ouvidos à voz rouca dos festivais e premiou a canção de Jobim e Chico, considerada estruturalmente mais apurada.
Na música cristã, o debate é semelhante. Alguns defendem que a escolha do estilo musical é de ordem primordial para a adoração, sendo que os temas da cristandade devem ser tratados por meio de uma música alegre ou reverente ou alegremente reverente. Para esses, a letra religiosa merece estilos musicais que inspirem religiosidade ou que estejam tradicionalmente relacionados à alegria tranquila ou à solenidade sem artifícios.
Outros creem que a letra, ao tratar de temas cristãos, “sacraliza” de antemão qualquer estilo musical, pois a força literária prevalece sobre o impacto estritamente musical. O gênero musical estaria a serviço de um bem maior, a evangelização contextualizada, capaz de atingir diferentes nichos culturais. Além disso, chega-se a afirmar que a música não teria moralidade inerente.
Nem todo estilo musical pode servir adequadamente às intenções do compositor. Carlos Lyra, ao ligar-se aos movimentos de resistência política universitária nos anos 60, renunciou à bossa nova, pois acreditava que esse estilo, referencialmente rebuscado, com influências jazzísticas e letras que versavam sobre “o amor, o sorriso e a flor”, não servia como música de confronto e de protesto. A rusticidade do baião e do samba, além de associados a uma suposta raiz nacional (hoje discutível) e ao homem do povo, serviria melhor aos propósitos políticos dos movimentos da época.
Na música sacra, não é incorreto supor que nem todo estilo musical seja próprio para o louvor e a adoração. Se a bossa nova seria um elemento refinado e doce demais para as durezas da confrontação política, não seria o caso de perguntar se o pagode ou o heavy metal, por conta de suas referências, são realmente adequados para expressar os temas cristãos? Bastaria enunciar uma letra religiosa para cristianizar esses estilos?
Nossa recepção a uma canção é afetada pelas referências que ela traz. Quanto a isso, não é possível ficar imune. O teórico da música Leonard Meyer e o semioticista Umberto Eco afirmam que a música denota sentidos e referenciais inscritos culturalmente. Numa época de saturação de signos audiovisuais como a nossa, é difícil negar a referencialidade presente numa obra musical. Talvez o cantor ou o compositor cristãos não queiram que alguém se obrigue a fazer associações estilísticas ao ouvir determinada canção, mas eles também não podem evitar que alguém venha a fazê-las.
Muita gente tem dificuldade em deletar a referencialidade moral de boa parte do pop/rock secular. Por isso, dão preferência a estilos mais tradicionais de música sacra, o que talvez possa ser explicado pela evidência de que a música é entendida como uma questão de gosto. Assim, é possível que as pessoas se fixem em seus gostos culturais e relacionem esses gostos a uma noção de reverência e santidade que desenvolveram em sua vida cristã.
A evangelização contextualizada, aquela que procura “ser grega para os gregos e romana para os romanos” a fim de alcançar alguns dentre todos, não é facilmente criticável. Há resultados válidos, mas também vale alertar para o perigo do pragmatismo inquestionável, o evangelismo vale-tudo. Será uma analogia esdrúxula certamente, mas vejamos assim: se o boxe, mesmo em sua reconhecida violência, ainda conservava regras e pudores, as lutas de vale-tudo radicalizam a proposta de um combate e abrem espaço para quase todo tipo de golpe que seria considerado desonroso no boxe.
Por sua vez, o vale-tudo evangelístico abre espaço para toda forma musical pop e usa efeitos, performances, letras e estilos que, nem sempre injustamente, são considerados desonrosos para a mensagem cristã.
Não se discute aqui a qualidade da produção musical ou a intenção evangelística de um estilo gospel contemporâneo. Mas não posso concordar com a vã separação que se tenta fazer entre música e letra de uma canção. Ora, uma canção é exatamente a conjunção de letra e música.
Essa pretensa separação entre estilo musical e letra que compositores gospel andam a fazer, como se a letra fosse mais importante que a forma musical, pode revelar não apenas um modo irrefletido de pensar a música, mas também uma superficialidade teológica no pensar o cristianismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário